|
|
 |
|
|
|
|
|
|
|
As Cegas: gênese
No clássico Meu Tio, de Jacques Tati, a assepsia contemporânea
espelhada no bairro novo, na
casa automatizada, nos objetos desinfetados, e contrastada pelas
imagens do bairro velho, de
edifícios assimétricos, com cachorros virando latas e uma gente
inclinada à morosidade dos afetos
mais do que a pressa dos compromissos. O contraste movia a
crítica.
Mas hoje, que não ha recanto que não seja superiluminado, fôlego
que não esteja hiperventilado,
felicidade que não possa ser adquirida, a hegemonia enfraquece o
contraste e se imuniza contra a
crítica.
Talvez o último recurso para rir - que significa distanciar-se,
que significa poder criticar - para rir do estagio atual das
coisas, se encontre onde nada se encontra: na morte. E assim, a
morte, anjo temido, pode ser o bom anjo que salvara - ou
assustara, ou desestabilizara - os cegos ofuscados por tanta
luz. É esta a idéia nuclear de As Cegas, e é aquele, Jacques
Tati, o mentor espiritual de nosso trabalho. O resultado desta
mistura comparece num enredo que reúne uma psiquiatra, uma cega
e a morte. Mas também no uso econômico das palavras, que não
movem a trama. Às vezes pantomímica, às vezes, dança As Cegas é
resultado de uma investigação que durou um ano, dentro e fora da
sala de ensaio. Foi um tempo de descobertas e aprendizado. Mas
foi sobre tudo um tempo de companheirismo, motor indispensável
para um trabalho independente, que se ergueu pela confiança e
entusiasmo de todos os artistas envolvidos.
Eu só posso agradecer a oportunidade desta jornada, que inaugura
agora uma nova etapa.
Claudia Maria de Vasconcellos
|
|
|
|
 |
Elenco: Gil Grossi, Neca Zarvos, Vera Bonilha
Texto e Direção: Cláudia Maria de Vasconcellos
Assist. Direção e Produção Executiva: Berenice Haddad
Operação de Som: Maíra Silvestre
Figurino: Patrícia Suplicy
Assistente de figurino: Ciríaco Neto
Costureira: Leci de Andrade
Iluminação: Ari Nagô
Trilha original: Natalia Mallo
Pesquisa sonora: Teatro do Tempo
Efeitos sonoros: Teatro do Tempo e Natalia Mallo
Efeitos especiais: Christian Scherf (Fixxon)
Preparação corporal: Letícia Sekito
Workshop de máscara: Daniela Biancardi
Workshop de mímica: Claudio Carneiro
Assessoria de imprensa: Morente Forte
Fotografia: Luciana Bortoletto
Design gráfico: Ângela Mendes
Produção: Neca Zarvos
Consultoria de produção: Priscila Jorge |
|
|
|
O tempo das cegas
Eis nos diante de uma alegoria direta, absolutamente atual, de
contundência didática para enxergarmos microscopicamente um
momento perigoso, de esquecimento, insulamento e anestésicos.
Refém do medo e gerido por uma ditadura do gozo, emerge o homem
extraviado do acontecimento real, e que para existir se
dependura religiosamente nos signos sociais e no consumo voraz
inspirado por uma felicidade asséptica, divorciada do ruído da
solidão, do silencio, da morte.
Se o ideal é estar nos píncaros da glória sob uma absoluta
ausência de tensão, se o sofrimento ou a dor são objeções
patológicas contra a vida, é claro, cavaremos inevitavelmente
neuroses, depressões, melancolias - e essas são as doenças do
nosso tempo como aponta também a OMS.
Nos colamos demasiadamente ao projeto do mundo, fincamos nossos
dois pés num presente opaco, sem porosidade alguma com o Fora,
com o Ser, com o virtual, o que seja... Nossa vida e reduzida a
uma sucessão de instantes mais do que contados, circunscrita a
gestos funcionais e a sentimentos novelescos. De La eu vim então
para La eu vou. Nada acontece de veemente a ponto de renovarmos
nossas linhas temporais de passado, presente e futuro. Não
experimentamos de fato, não sonhamos algo de próprio. Não
ousamos por em questão nosso nome, fiado pelo destino já traçado
desde sempre. A este homem sedado de hoje talvez reste a ocasião
de um susto (ou de um surto), como chance de abertura de uma
fresta que nos de a medida do assombro a que estamos lançados,
em que possamos afirmar (e não aderir ao mundo) e valorizar a
vida na sua inteireza. Pensar ou não pensar na morte, aprender a
morrer ou a viver, ter a morte como aliada ou o homem livre não
deve pensar nesse "mau encontro"? A morte como fato ou
acontecimento? Trata-se apenas de uma capacidade, senão de amar
o que e, ao menos de lidar com o que e, e sem a dimensão da
despedida, da fugacidade, do sopro, não teremos a dimensão da
vida, e assim abrimos mão de ser o que verdadeiramente somos. O
imperador Adriano de Marguerite Yourcenar queria "entrar na
morte de olhos abertos"; Winnicott queria estar vivo ao morrer;
o índio guerreiro dança para a morte... Enfim, ser para a morte,
a morte para ser, dançar para a morte e morte para dançar: e não
estamos falando da mesma coisa? Com o que (não) nos agenciarmos,
de fato, para se viver outra qualidade de Presença? Com As
Cegas, isso entreveremos.
EmilioTerron
|
|
|
|
 |
|
|
|
|
|
|
|
 |
|
|
|
As Cegas
fotos: Luciana Bortoletto |
|
|
|